quinta-feira, 25 de junho de 2009

Ácido lático, lactato e os trotes pós-jogo: a saga continua... Continua?!
Polêmica e mitos criados no futebol devido ao acesso cada vez mais fácil às informações

Rodrigo Leitão, Fernando Catanho
É com enorme prazer que, através deste texto, sejamos porta-vozes, dentre alguns do meio acadêmico-científico, a falar sobre a trama que se desenvolve unindo essas duas inofensivas palavras: ácido lático e lactato.
Inofensivas? Talvez seja certa petulância denominá-las assim, tendo em vista o poder de confusão e furor causado por essas palavras na prática esportiva há anos. Vamos aos fatos.
Na década de 30 já se pesquisava o poder energético do músculo-esquelético dos seres humanos. Desde então, já era sabido que existia, nesse mesmo tecido, uma tal via glicolítica, que acabou se tornando muito famosa não só pelo fato de se constituir em uma usina de força para exercícios intensos, mas também porque dessa famigerada via "nascia" um produto praticamente letal para nosso organismo: o ácido lático!
Espere um minuto! Pare e reflita! Será que nosso organismo (especialmente o músculo-esquelético) seria capaz de, ao buscar cumprir com um desafio metabólico, procurando funcionar cada milésimo de segundo mais e mais, produziria, ele mesmo, um "sujeito" que causaria fadiga, cansaço, dor, incômodo, incapacidade, gerando uma inibição do seu próprio funcionamento? Não soaria um tanto ilógico, caro leitor?
Obviamente não estamos aqui para discutir sobre os desígnios de Deus sobre uma de suas mais belas criações: o ser humano. Mas, segundo uma visão evolucionista, se algo foi criado por Ele para funcionar, deve haver uma (ou mais) forma(s) de funcionar. Logo, se o músculo-esquelético precisa muito estar "focado" na produção de movimento, graças ao magnífico estoque de glicogênio, por que produzir algo que lhe atrapalhe?
Caminhando para um olhar bioquímico, podemos nos consolar de certa forma. Por que? Bem, segundo a própria química, seria fisiologicamente improvável a existência de ácido lático em nosso organismo. Novamente, por que? Bem, imagine a seguinte situação: colocar um torcedor palmeirense "no meio" da torcida do Corinthians. A pergunta: existiriam condições favoráveis à sobrevivência desse pobre torcedor? Enfim, ao que parece, não existem condições fisiológicas favoráveis em nossas células, inclusive no músculo-esquelético, para a existência (e sobrevivência) do ácido lático. Logo, quem existiria? Bem, seu "algoz", o lactato.
Um pouco mais além, utilizando-se dos achados de um brilhante autor chamado Robert Robergs, firma-se mais um capítulo no intento de desvendar os mistérios dessa novela. Segundo esse autor, quando o lactato (e não o ácido lático) é formado no músculo-esquelético, não há nenhum prejuízo para estas células. Ou seja, ao produzir lactato, não há, por causa deste, fadiga, cansaço, dor, incômodo e incapacidade. Pelo contrário, o lactato, por mais de uma razão, seria considerado como uma "salvação" para a célula, pois evitaria que um certo caos se instalasse nela. E mais, esse simples composto formado por três carbonos, inofensivo por natureza, ainda pode servir como energia para demais células do organismo, como o fígado e o coração.
Bem, confesso que esta é uma discussão ainda muito acirrada na literatura. Porém, muitas evidências surgiram e têm surgido inocentando o lactato, eximindo-o de grande parte da culpa que, outrora, fora atribuída ao ácido lático.
Nesse sentido, se nosso organismo não produz o tal ácido (que, na maioria das vezes, nos traz a imagem de algo ruim, destruidor, corrosivo) e, se o "mocinho" lactato é tão útil e versátil, fica uma indagação: será que a direção do treinamento físico que estamos seguindo é aquela que gostaríamos e pretenderíamos seguir quando considerando os "atores" dessa histórica, por vezes emocionante, novela?
Senhores e senhoras, por essas e por outras histórias relacionadas às condutas práticas quanto ao ácido lático e lactato, o alarme fisiológico deve ser dado, em alto e bom tom, pois o incômodo leva a tomada de providências. Gritar, berrar, saltar, discutir, espernear, resmungar, indagar, discursar, profetizar, dialogar. Sejamos parte integrante e ativa dessa novela!
Como exemplo e contextualizando, vamos analisar mais um capítulo dessa história logo a seguir. Peço a vossa preciosa atenção.
Espantoso como em um mundo globalizado (termo que até já parece meio "batido"), de acesso rápido a informação, ainda ocorrem no futebol profissional situações ultrapassadas, arcaicas que por imitação (um que vê o outro, faz igual e leva um outro a fazer também) se tornam mito; e o mito se torna MITO que se torna verdade; sem ser nem de longe, muito longe a tal "verdade".
Uma prática comum de longa data no futebol é uma corrida leve (um trote) de 10 a 30 minutos logo após atividades competitivas. Em outras palavras, acaba a partida e o "preparador físico" logo vai organizando uma corridinha leve para "auxiliar", "acelerar" a recuperação do atleta.
Justificativas? As mais variadas possíveis; mas todas elas norteadas pelo "ácido lático" (ácido lático?). Segundo os argumentos, o trote aceleraria a remoção de "ácido lático" do músculo e do sangue (já que seu acúmulo seria prejudicial e ele poderia deixar resíduos até o dia seguinte).
Trotar depois do jogo virou moda. Para os atletas a sensação de estarem se esforçando mais para defender a camisa de sua equipe. Para a torcida, a prova de que os atletas estão envolvidos com a preparação do time. Para o preparador físico, "o pulo do gato"; trabalho bem cumprido. E por virar moda (inevitável) a estratégia fora copiada por equipes de base (pobres atletas "adultos em miniatura").
No final da década de 90, a tal prática foi "desmascarada" por cientistas, através de pesquisas que mostraram que o tal trote era um desperdício de tempo; um desgaste a mais, injustificável para atletas já cansados de 90 minutos de jogo intenso. O "ácido lático" que já sabemos nem é ácido lático, não levava, como argumentado, um dia para "desaparecer" do músculo ou do sangue; em repouso isso era questão de minutos (no máximo, na pior das hipóteses, em atletas mal condicionados, 120´). E o pior? Ele nem era o vilão da história...
Bom, passaram-se os anos e a moda que virou mito e então verdade, mesmo desmascarada, ainda é praticada pelos mais desatentos e desinformados treinadores e preparadores físicos. O problema é que hoje o desaforo atinge com mais força as categorias de base e vez ou outra ainda aparece na categoria principal.
E como se não bastasse a repetição do equívoco no futebol masculino, ele acabou aparecendo no futebol feminino e vem contaminando cada vez mais equipes (como se não bastasse a carência de investimentos e estrutura, ainda faltam pessoas capacitadas que "pensam" - pobre futebol feminino).
Senhores, estão aí a Fisiologia do Exercício, a Bioquímica do Exercício, a Nutrição do Exercício, as Teorias do Treinamento Desportivo e diversas outras áreas que compõem a "Multi-Transdisciplinaridade" das Ciências do Desporto, cheias de informação e conhecimento, "sedentas" para participarem da prática.
Então, o que precisamos fazer? Corramos em alta velocidade atrás do conhecimento, porque com esse "trotezinho" pós-jogo, ele (o conhecimento científico) está ficando lá na frente, muito longe.
Ao final, o devaneio
O sujeito acaba de fazer amor com a esposa olha para o lado com um ar de "mandei bem"; e pensa: "vai ficar uma semana sem querer sexo (e ao mesmo tempo o eco da experiência soa em sua mente: "ufa, tomara mesmo, ando meio cansado, é bom ter uma folga")".
É, mas como às vezes nem toda experiência basta, a esposa se vira para o lado, olha bem no olho do marido e diz:
- Amor, foi muito bom... amanhã, amanhã eu quero mais... muito mais!!!
Já com todo cansaço acumulado do trabalho sentido no corpo (agravado pelos 90 minutos de sexo) - e sem o vigor de antigamente - sem pestanejar, o sujeito se levanta, calça o par de tênis e adivinhem; sai para um "trotezinho" ("se dá certo pros atletas, vai dar certo pra mim também...")
Se a moda pega...

* Professor Fernando Catanho (Labex-Unicamp) e professor Rodrigo Leitão (FEF-Unicamp)