sexta-feira, 22 de outubro de 2010

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Motricidade Humana: Contribuições para um Paradigma Emergente

Ramo pedagógico da CMH – Educação Motora


Manuel Sérgio, neste livro, defende e anuncia uma nova ciência do Homem, a Ciência da Motricidade Humana. Uma disciplina só consegue o estatuto de ciência, quando tem o seu próprio objecto de estudo, que lhe permite formular leis próprias, princípios e construir modelos interpretativos. A Ciência da Motricidade Humana tem também, a sua matriz disciplinar independente, que defende a complexidade ontológica do homem, distanciando-se das ciências da natureza.
Há ainda a considerar, que as ciências são também elementos da cultura, sendo influenciadas pelos pressupostos das comunidades científicas que as defendem, ou seja, há sempre nelas uma relação dialéctica entre sujeito-mundo em que: […] A cultura origina o homem e é o seu produto […] (p. 15). Portanto, o Homem e a cultura interagem mutuamente, pois o sujeito é fortemente afectado pela cultura em que está inserido e também, influencia essa mesma cultura quando cria e inventa novos instrumentos.
Esta nova ciência do Homem surge dos avanços que se dão no conhecimento e para que a possamos compreender é necessário ir às suas origens, à história dos seus saberes e dos seus fazeres, em que: No século XVII John Lock em Alguns pensamentos sobre a educação indicou pela primeira vez a expressão: educação do físico, separando-a da educação intelectual. A educação do físico fundamentava-se no treino, na disciplina e na aquisição de hábitos saudáveis. Mas, foi no século XVIII que surgiu a Educação Física tradicional à luz da filosofia de Descartes – dualismo cartesiano – filosofia essa que apostava na separação entre o corpo e a alma (res cogitans/res extensa), considerando-as como duas substâncias diferentes e independentes. Era privilegiado sobretudo a essência em detrimento da existência, pois a alma é consciência pura e o corpo mera extensão, matéria. Aqui, o objecto de estudo radicava somente no corpo físico, mas esquecendo toda a sua inteligibilidade.
As actividades da Educação Física sob a égide desse paradigma, visavam apenas o desenvolvimento dos factores físicos do Homem, em que se privilegiava o movimento analítico, de imitação, preso às repetições mecanicistas e às performances instituídas, ou seja, privilegiava um modelo estático e conformista, que roubava ao homem a sua identidade, a sua autonomia e a sua criatividade.
Uma nova perspectiva do conceito de Homem surgiu com a fenomenologia e a hermenêutica, em que se rejeita o dualismo do inteligível e sensível, pois nessa visão […] o sujeito é o seu corpo, seu mundo e sua situação […] (p. 17) estabelecendo uma relação dialógica e complexa entre eles.
Aqui, o Homem deixa de ser visto apenas como corpo, res extensa, que vivia sob a égide do espírito, para passar a um Homem que pensa, age e sente, sendo um Homem com seu movimento consciente e intencional, possuidor de sentido e de significado.
Dos vários autores que defendem esta abordagem, surge um com uma defesa mais activa, Merleau-Ponty, argumentando que nós temos de nos livrar de todos os conceitos racionalistas e negar assim o paradigma cartesiano. Explica-nos então, que o ser humano não é um conjunto de partes ligadas entre si, em que o corpo é mero objecto e a alma o sujeito essencial, mas sim, esses um todo complexo, sem separação e distinção.
Com Merleau-Ponty elucidou-se a noção de motricidade e intencionalidade operante, ficando reforçada a convicção de que o corpo tem intencionalidade na sua acção, não havendo separação entre corpo e alma, pois para o autor, […] o «ser da verdade não é distinto do ser no mundo» (p. 29). Por isso, o corpo só pode ser compreendido na sua globalidade e complexidade. Então, porque este é portador de sentido em todo o seu movimento, mais do que mera agitação, daí a sua motricidade.
Manuel Sérgio elucidado por Arnold Gehlen diz que, o ser humano apresenta uma, […] singularidade inconfundível […] (p. 21), é um ser carente, pois tem limites que o condicionam, tornando-se assim […] «desesperadamente inadaptado» (p. 21). No entanto, como Homem dotado de individualidade e praxidade, possuidor de reflexão e acção […] move-se para superar e superar-se […] (p. 32) e, por isso, é capaz de superar as suas carências e criar um conjunto de possibilidades e condições necessárias à sua sobrevivência.
A pós-modernidade faz emergir um novo conceito de Homem, visto como um ser complexo, […] corpo-alma-natureza-sociedade (p. 23), que se movimenta intencionalmente rumo à transcendência, sendo esta motricidade uma constante, pois o Homem como projecto, visa sempre o absoluto e nunca está satisfeito com o que possui, procurando sempre mais e melhor.
Com a emergência deste novo conceito de Homem, houve a ruptura com o paradigma cartesiano, pois este deixou de dar respostas às problemáticas que a realidade colocava e, por isso, foram necessárias buscas de alternativas que propiciassem o avanço do conhecimento.
Foi no âmbito da Física Clássica que começou a emergir um novo paradigma, com novos pressupostos e leis que nortearam todas as ciências – o paradigma da complexidade – que veio permitir dar novos contributos à compreensão da vida humana em toda a sua plenitude.
Rompe-se então, com o paradigma simplista ou cartesiano, para passarmos ao paradigma da complexidade. Então, a Educação Física, que trabalhava apenas o físico, começa a ficar para trás, para dar lugar à Ciência da Motricidade Humana, onde o que está em jogo não é apenas as qualidades físicas, mas também o sentido do movimento humano.
Na Ciência da Motricidade Humana, o Homem não se reduz ao estatuto de objecto, nasce a realidade de um ser-agente-encarnado que na Motricidade Humana visa a transcendência, ou seja, um Homem inteligível que, […] age intencionalmente e envolve a sua conduta de um contexto de sentido (p. 16).
A referida ciência parte, então, do corpóreo mas alarga-se à pesquisa da percepção, que pode ser entendida como consciência de uma conexão corpo-mundo. Confere ao Homem a vontade de criar, a vontade de superar-se e tem ainda uma visão que não está presa à perspectiva clássica, mas sim a uma visão de integração e de complementaridade dos organismos vivos – o todo nas partes e as partes no todo, segundo Edgar Morin na esteira de Montaigne.
Para Manuel Sérgio, a Motricidade Humana deve ser uma ciência, porque apresenta métodos e técnicas que não se confundem com as demais ciências e, por isso, deve ser ensinada e deve ensinar a problematizar. Ela permite também a discussão em torno de questões tanto teóricas como práticas, tendo até o seu próprio objecto de estudo, que é a motricidade do ser Humano na intencionalidade operante, rumo à transcendência, pois de todas as tarefas que os especialistas de Educação Física desempenham, desde o lazer, a educação, a competição, e outros, têm um denominador comum que é a Motricidade Humana.
E por seu objecto de estudo ser o Homem no movimento, esta ciência deve inserir-se no grupo das ciências do Homem, em que […] o físico, biológico, antropossociológico se tornam diferentes, complementares e […] integrando o mesmo todo (p. 77). Esta, distingue-se das ciências naturais, porque há nela uma ética que faz parte do imaginário social, como por exemplo, a ideia do fair play, igualdade de oportunidades, que não encontramos nas outras ciências e, também, porque no movimento para a transcendência, temos oportunidade de pôr à prova, não só as qualidades físicas, mas a perspicácia, a criatividade, a inventividade e a inteligência. Distingue-se ainda, porque nela há uma imprevissibilidade que não pode ser controlada experimentalmente.
A Ciência da Motricidade Humana tem como ramo pedagógico a Educação Motora, tendo como objectivo a educação e a formação do ser Humano, como ser integral e complexo, em que educar não é punir impulsos, mas exprimi-los em formas culturais, ou seja, estabelecer uma harmonia entre homem e meio, pois o homem é a relação dialéctica com o mundo.
Devemos compreender que o homem físico e o corpo como uma realidade isolada em aspectos biopsíquicos e sociais está superado, ou seja, que primamos pela dialéctica corpo-mente-natureza-sociedade-desejo, e que é no movimento de superação que o homem faz história, cultivando sempre o espírito crítico, inconformista e a curiosidade constante.
Então, o professor de Educação Motora deve saber reflectir sobre o que é a Ciência da Motricidade Humana, basear-se em referências conceptuais, que leve o educando a perceber que não é um objecto mas um sujeito, e que não deve estar num processo adaptativo, mas sim transformador da realidade, conduzindo o educando a descobrir a sua inteligibilidade.
Deve ainda aplicar a Motricidade a situações problemáticas da realidade, de modo a que a escola não esteja desconectada dessa realidade, permitindo ao educando ajudar a resolver os seus problemas. Também deve ajudar a viver o momento da transcendência, pois este abarca incertezas, inquietações, mas uma vontade de ir mais além.
A Educação Motora deverá ainda fazer sentir ao educando a necessidade da pergunta, porque só […] cresce quem sabe perguntar […] Quem está livre e apto a questionar (p. 86).
Deverá fazer sentir ao educando que o corpo é uma globalidade e todo o movimento deste, é consciente. Para além do desporto prática, é necessário que este se distinga pela crítica e pela problematização e que além do físico o desportista seja um ser que se movimenta, superando-se.
É ainda necessário fazer sentir ao educando que o desporto democrático é inverso ao oportunismo, à violência, devendo existir sempre a igualdade de direitos, de oportunidades, deveres, sem que hajam quaisquer atitudes discriminatórias.
Em jeito de conclusão profiro que a formação do educando constitui um processo fundamental de transformação do Homem e transformação no desenvolvimento desportivo. Por isso, nós profissionais de Ciências do Desporto, temos de compreender a nossa actuação no processo de formação do Homem, visando estes objectivos enunciados, anteriormente, no intuito de transformarmos os nossos educandos em Homens críticos, criativos, capazes de dar resposta aos problemas que o contexto lhes coloca.
Devemos então, educar o Homem a ser capaz de criar a sua própria história, na busca da transcendência, e não educá-lo a ser um mero objecto ou espectador, pois só quando o homem escreve a sua própria história é que ele é capaz de se realizar como ser-agente-encarnado.


Bibliografia: SÉRGIO, Manuel. Motricidade humana: contribuições para um paradigma emergente. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. (Colecção Epistemologia e Sociedade)